sábado, 20 de outubro de 2012

Medo do escuro

  Dez horas da noite, horário um tanto injusto para se ir dormir, ainda mais quando ainda se é uma criança. Kevin pretendia ficar acordado até mais tarde, para assistir a alguns programas de seu interesse, assuntos comuns da recém-iniciada puberdade. Tinha um plano simples em mente. Ficaria enrolando no sofá até ser esquecido por seus pais, tendo a sua disposição a televisão e toda a programação desejada ao alcance das mãos. No entanto, o mundo não é fácil para um garoto de apenas dez anos. Existem regras que devem ser cumpridas, leis rigorosas impostas pelos pais, tais como ir deitar-se bem cedo, para estar disposto encarar a escola no dia seguinte.
  Não há discussão nessas situações. Qualquer palavra pode ser interpretada como rebeldia, resultando em um castigo amargo pelo restante da semana. Kevin não quer correr esse risco. Preza por sua liberdade e pela diversão com os amigos todas as tardes, jogando bola em um dos campos de futebol próximos de sua casa. Um dia sem seu passatempo preferido e Kevin jura ser capaz de enlouquecer. Sendo assim, caminha até sua cama sem pestanejar, sendo seguido pelo olhar vigilante de seu pai, que o segue até o antro de seu descanso, apenas para ter certeza de que não vai ser enganado. Kevin é persistente. Tem um segundo plano em mente, mas só pensa em coloca-lo em prática mais tarde, quando seus pais estiverem mergulhados no chamado sétimo sono.
  Deita-se e recebe o boa noite de seu pai, fechando os olhos, fingindo-se sonolento e quase adormecido. Chega quase a sentir vergonha de si mesmo, por ser tão falso, quase um ato de primeira categoria. Aguarda pacientemente, até que o silêncio toma conta de toda a sua casa. Deitado em sua cama, olhando para o teto, Kevin luta contra os primeiros sinais de sono que tentam domá-lo. O garoto é forte e não pensa em dormir cedo. Tem algo de muito tentador lhe esperando na televisão, garotas lindas, as quais pretende arrastar mais tarde para seus sonhos. Bela e insaciável pré-adolescência, capaz de mexer com os hormônios de qualquer ser vivo na terra.
  Levanta-se na ponta dos pés. Usa meias, o que faz suas pisadas soarem silenciosas no vazio do quarto, quase imperceptíveis. Já é madrugada, Kevin começa a sentir sono mais é possuído por uma necessidade incontrolável de dar ao menos uma vislumbrada rápida nas belas mulheres sempre sensuais dos programas noturnos. Caminha para a saída de seu quarto, mas antes que possa deixa-lo para trás, um som de pancada contra madeira lhe faz parar assustado, com o coração martelando dolorosamente no peito. Olha na direção do ruído, deparando-se apenas com a escuridão, pesada e implacavelmente presente. Recua diante das trevas, correndo em direção a sua cama, lançando-se sob a proteção de suas cobertas e lençóis.
  Kevin desde bem pequeno, sempre carregou em seu íntimo um medo inexplicável do escuro. Segredo que guarda sigilosamente e que poderia torna-lo motivo de chacota em seu grupo de amigos. Não consegue explicar o motivo de sua fobia. O fato é que diante da escuridão, sua coragem se desvanece feito gelo no calor, deixando-lhe acuado e assustado. O problema é sua imaginação, sempre exagerada demais, capaz de criar formas em meio ao escuro, dando-lhe corpo e até mesmo expressões. Em certas ocasiões, chega a ouvir vozes nas trevas, chamando-lhe, convidando-lhe para algo que prefere não conhecer.
  Recorda-se de quando tinha apenas cinco anos. Estava sozinho em seu quarto, em uma noite de intensa tempestade. Raios protestavam do lado de fora, produzindo clarões fortíssimos, que rasgavam a escuridão a todo o momento, produzindo sombras disformes no quarto de Kevin. O garoto olhava para a parede, tremendo de medo em sua cama, resistido bravamente ao desejo de ir ao quarto de seus pais e dormir junto deles, protegido de qualquer perigo. No entanto, seu orgulho de garoto e futuro homem o impede de um ato tão covarde. Persiste em seu canto, mesmo amedrontado, lutando bravamente contra o terror que se apossa de seus sentidos, transformando as sombras distorcidas em formas abominadoras, monstros feitos de trevas.
  Então, em um dos clarões repentinos, uma criatura surge diante de seus olhos, real como a tempestade que despenca do lado de fora da casa. Um ser de pele verde e fedorenta, gotejando algo que não dá para ser identificado, mas de consistência viscosa e coloração amarelada. Possui garras longas e pontiagudas no que deveria ser tido como mãos e olhos vermelhos, como sangue. A criatura lhe encara, e sorri com sua fileira de dentes afiados, ansiosos por mergulharem em carne macia de criança. Kevin grita diante da visão, grita até ser acudido pelos pais, resgatado de seu pesadelo, que ao contrário dos outros que desaparecem com o retorno da realidade, dispara para fora do quarto, ocultando-se em meio às sombras, fieis protetoras das aberrações noturnas.
  Lembrança desagradável, que ainda continua aterrorizando Kevin nas noites de insônia. Um medo do qual nem as mulheres sensuais dos programas noturnos poderiam fazê-lo esquecer, isso porque Kevin ainda pensa que a criatura de pele verde não era fruto de sua imaginação e sim algo real, de carne e osso. Tão real que poderia mata-lo, arrancar-lhe as tripas e de quebra ainda comer-lhe os olhos. Kevin tem medo de que a coisa o visite novamente. Quem sabe, um reencontro mágico, com a criatura abrindo a boca e exibindo sua fileira invejável de presas, capazes de partir uma tábua de madeira ao meio, com uma facilidade incrivelmente assustadora.
  Kevin tem sido mal. Merece uma punição. Tem mentido demais para os pais, inventado histórias para se livrar de situações complicadas. Colas nas provas da escola, programas inapropriados durante a madrugada, envenenamento do cachorro do vizinho, (esse só por odiar o animal, um cão atrevido, pequeno, mas corajoso o bastante para morder a perna dos que se atrevessem a desfilar diante de seus olhos), além de um mundo gigantesco de pequenas infrações, terríveis quando se é apenas uma criança. E o castigo está prestes a chegar e não vem na forma de uma chinelada da mãe nem uma bofetada do pai, mas sim na encarnação real de um carrasco.
  Um cheiro pútrido toma conta do quarto e Kevin quase tem certeza de saber a quem pertence, mas prefere ignorar sua sabedoria, rezando para estar completamente errado em suas suposições. Descobre parte de sua cabeça e encara o seu castigo, de pé, na forma de uma criatura esverdeada, com a pele coberta por uma gosma viscosa, de coloração amarelada e nojenta. A coisa lhe encara e sorri, exibindo seus belos dentes afiados. Dessa vez, ninguém ira socorrer o pobre garoto, que já começa a gritar, com toda a força de seus pulmões. A criatura avança, ignorando o desespero de sua vitima, que berra como se não houvesse amanhã.
  A criatura arranca o cobertor da cabeça de Kevin e o empala com suas garras enormes e afiadas. Kevin chia desesperado ante ao aperto das unhas da criatura, incapaz de continuar a gritar. Sabe que não há mais salvação. Seus dias como garoto tarado e assíduo telespectador das garotas da madrugada estão terminados. A criatura o arrasta, levando-o para a escuridão existente sob a cama, onde os dois mergulham. Logo, a dor se faz sentir, acompanhada de ruídos molhados, de carne sendo mastigada. Kevin grita por uma última vez e logo o mundo desaparece diante de seus olhos e mergulha em meio à escuridão, sufocando-se junto de seu medo infantil do escuro.

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